quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Grupo Krisis - "A sociedade do Apartheid Neoliberal"

Uma sociedade centrada na abstracção irracional do trabalho desenvolve necessariamente a tendência para o apartheid social, se a venda eficaz dessa mercadoria que é a força de trabalho deixa de ser a regra e passa a ser a excepção. Há muito que esta lógica é secretamente aceite e até apoiada activamente pela totalidade das facções integrantes do imenso campo do trabalho, que abrange todas as tendências políticas. Já não discutem a questão de saber se cada vez maiores camadas da população são empurradas para a marginalização e excluídas de qualquer participação social, mas apenas como impor esta selecção.

A facção neoliberal entrega o trabalho sujo, social-darwinista, à «mão invisível» do mercado. Neste sentido, as estruturas do Estado social são desmanteladas de modo a marginalizar o mais discretamente possível todos aqueles que já não conseguem participar na concorrência. (...) Para tratar do «lixo humano» indesejável há a polícia, as seitas religiosas redentoras, a Mafia e a sopa dos pobres. (...) Aos excluídos já só resta uma função social: a de servirem de exemplo dissuasor. A sua desgraça deverá servir para espicaçar todos aqueles que ainda se encontram na corrida para a terra prometida da sociedade do trabalho, a lutar por um lugar, ainda que entre os últimos, e para manter a própria multidão dos perdedores num movimento febril, de modo a que não lhes ocorra a ideia de se revoltarem contra as exigências desavergonhadas do sistema.

Mas, mesmo obrigando a maior parte dos indivíduos a pagar o preço da auto-renúncia, o admirável mundo novo da economia de mercado totalitária reserva-lhes um lugar de homens-sombra numa economia-sombra. Só lhes resta servir humildemente os mais bem pagos ganhadores da globalização, desempenhando o papel de mão-de-obra barata e de escravos democráticos da «sociedade de prestação de serviços». Os novos «trabalhadores pobres» estão autorizados a limpar os sapatos aos últimos homens de negócio da moribunda sociedade de trabalho, a vender-lhes hambúrgueres contaminados ou a vigiar os seus centros comerciais.

(...) A imprensa económica há muito que deixou de fazer segredo da perspectiva que idealiza para o futuro do trabalho: as crianças do terceiro mundo, que limpam os pára-brisa dos automóveis nos cruzamentos poluídos, são o luminoso exemplo de «iniciativa empresarial» que deve orientar, tão solicitamente quanto possível, os desempregados da nossa sociedade, supostamente carenciada de «prestação de serviços». «O modelo do futuro é o indíviduo na qualidade de empresário da sua força de trabalho e da sua protecção social»...

domingo, 18 de novembro de 2007

Pierre Bourdieu - "Sobre a Televisão" (cont.)

Continua a dizer-se, em nome do credo liberal, que o monopólio uniformiza e a concorrência diversifica. Nada tenho, é claro, contra a concorrência, mas limito-me a observar que, quando se exerce entre jornalistas ou jornais que se encontram submetidos às mesmas coacções, às mesmas sondagens, aos mesmos anunciantes (basta ver com que facilidade os jornalistas passam de um jornal para outro), a concorrência homogeneiza. Comparem-se as capas dos semanários franceses com quinze dias de intervalo: os títulos são mais ou menos os mesmos. Da mesma maneira, nos jornais televisivos ou radiofónicos de grande difusão, na melhor das hipóteses, ou na pior, só a ordem das informações transmitidas varia.Isto tem, por um lado, a ver com o facto de a produção ser colectiva. (...)

Mas o colectivo cujo produto são as imagens televisivas não se reduz ao grupo constituído pelo conjunto de uma redacção - engloba o conjunto dos jornalistas. (...) universos onde as imposições colectivas são muito fortes e, em particular as imposições da concorrência, na medida em que cada um dos produtores é levado a fazer coisas que não faria se os outros não existissem (...). Para os jornalistas, a leitura dos jornais é uma actividade indispensável e a revista de imprensa um instrumento de trabalho: para saber o que vão dizer, precisam de saber o que disseram os outros. Tal é um dos mecanismos através dos quais se engendra a homogeneidade dos produtos propostos. Se o Libération der a primeira página a certo acontecimento, o Le Monde não poderá ficar-lhe indiferente, embora possa demarcar-se um pouco para marcar a sua distância e conservar os seus títulos de elevação e seriedade. Mas estas pequenas diferenças às quais, subjectivamente, os diferentes jornalistas dão grande importância, mascaram as semelhanças enormes. (...)

As escolhas que se operam na televisão são de certo modo escolhas sem sujeito. Para explicar esta proposição talvez um pouco excessiva, invocarei simplesmente os efeitos do mecanismo de circulação circular a que já rapidamente aludi: o facto de os jornalistas que, de resto, têm muitas propriedades comuns, de condição, mas também de formação e de origem, se lerem uns aos outros, se verem uns aos outros, se encontrarem constantemente uns com os outros em debates onde aparecem sempre os mesmos, tem efeitos de encerramento e, não devemos hesitar em dizê-lo, de censura tão eficazes - mais eficazes até porque o seu princípio é mais invisível - como os de uma burocracia central, uma intervenção política expressa. (...)

Se nos perguntarmos, pergunta que poderá parecer um tanto ingénua, como são informadas as pessoas que estão encarregadas de nos informar, veremos que, de um modo geral, são informadas por outros informadores. Decerto há a AFP, as agências, as fontes oficiais (ministérios, polícia, etc.), com as quais se considera que os jornalistas mantêm relações de intercâmbio muito complexas, etc. Mas a parte mais determinante da informação, quer dizer dessa informação sobre a informação que permite decidir o que é importante, o que merece ser transmitido, vem em grande parte dos outros informadores. E esse facto conduz a uma espécie de nivelamento, de homogeneização das hierarquias de importância. (...)

Há actualmente uma "mentalidade de níveis de audiência" nas salas de redacção, nas editoras, etc. É em termos de sucesso comercial que em toda a parte se pensa. Há apenas uns trinta anos, e a partir de meados do século XIX, a partir de Baudelaire, Flaubert, etc., no meio dos escritores de vanguarda, dos escritores para escritores, reconhecidos pelos escritores, ou, do mesmo modo, entre os artistas reconhecidos pelos artistas, o sucesso comercial imediato era suspeito: via-se nele um sinal de compromisso com o século, com o dinheiro...

U Gambira, líder da contestação dos monges birmaneses

Defendemos a não violência, mas a nossa determinação é de aço. Se a minha vida ou a dos meus colegas tiver de ser sacrificada, pouco importa. Outros calçarão as nossas sandálias e marcharão no nosso lugar.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Georg Heym - "O Deus da Cidade"

Escarrapachado sobre um quarteirão,
À sua volta acampam negros ventos.
Ele olha irado, ao longe, a solidão
De últimas casas em campos nevoentos.

Baal ao pôr-do-sol, pança luzindo,
À volta ajoelham as grandes cidades.
De um mar de negras torres vem subindo
O eco monstruoso das trindades.

Milhões entoam música pela rua,
Em dança coribântica exaltada.
Das chaminés fabris o incenso escoa,
Sobe até ele, em fragrância azulada.

No seu sobrolho crepitam temporais.
Narcotiza-se em noite o escuro dia.
Como os abutres, esvoaçam vendavais
Em cabeleira irada, que arrepia.

Estende no escuro a mão de carniceiro.
Um mar de fogo varre, num estremecer,
Toda uma rua, que acaba num braseiro,
Até que o dia tarde a amanhecer.

Grupo Krisis - "A ditadura do trabalho morto"

Um cadáver domina a sociedade – o cadáver do trabalho. (…) A sociedade dominada pelo trabalho não vive uma crise transitória, antes está chegada ao seu limite último. Na sequência da revolução microelectrónica, a produção de riqueza desligou-se cada vez mais da utilização da força de trabalho humano – numa escala até há poucas décadas apenas imaginável na ficção científica. Ninguém pode afirmar com seriedade que este processo voltará a parar, e muito menos que possa ser invertido. A venda dessa mercadoria que é a força de trabalho será no século XXI tão promissora como foi no século XX a venda de diligências. Porém, nesta sociedade, quem não consegue vender a sua força de trabalho é considerado "supérfluo" e é atirado para a lixeira social.

(…) Trata-se de um absurdo: a sociedade, nunca como agora, que o trabalho se tornou supérfluo, se apresentou tanto como uma sociedade organizada em torno do trabalho. Precisamente no momento em que está a morrer, o trabalho revela-se uma potência totalitária que não tolera nenhum outro deus perto de si. Dentro da vida psíquica, dentro dos poros do dia a dia, o trabalho determina o pensamento e os comportamentos. E ninguém poupa despesas para prolongar artificialmente a vida desse ídolo, o trabalho. O grito paranóico dos que clamam por «emprego» justifica até que se aumente a destruição dos recursos naturais, com resultados há muito conhecidos. Os últimos obstáculos à total comercialização de todas as relações sociais podem ser postos de lado, sem qualquer crítica, na mira de meia dúzia de miseráveis postos de «trabalho». E a ideia de que é melhor ter um trabalho «qualquer» do que não ter nenhum trabalho tornou-se uma profissão de fé universalmente exigida.

Quanto mais se torna claro que a sociedade do trabalho chegou definitivamente ao fim, mais violentamente se recalca este facto na consciência pública. Por diferentes que possam ser, porventura, os métodos de tal recalcamento, têm um denominador comum: o facto, mundialmente constatável, de o trabalho se revelar irracional enquanto fim em si mesmo, de ser algo que se tornou a si próprio obsoleto, é transformado, com a obstinação típica de um sistema delirante, em fracasso pessoal ou colectivo dos indivíduos, das empresas ou de certas «localizações» geográficas. As limitações, que objectivamente são do próprio trabalho, devem passar por problema subjectivo dos excluídos.

Enquanto para uns o desemprego se deve a reivindicações exageradas, à falta de disponibilidade ou de flexibilidade, outros acusam os seus «gestores» e políticos de incompetência, de corrupção, de ganância ou de traição a determinadas regiões. Mas, ao fim e ao cabo, toda essa gente está de acordo com o ex-presidente da Alemanha, Roman Herzog: seria preciso um «abanão» em todo o país, exactamente como se o problema fosse idêntico à falta de motivação de uma equipa de futebol ou de uma seita política. Todos devem, «de uma forma ou de outra», agarrar-se ao remo com força, mesmo que o remo tenha desaparecido há muito, e todos devem, «de uma forma ou de outra», pôr mãos à obra, mesmo que já não haja nada para fazer (ou só coisas sem sentido). O subtexto desta mensagem triste é inequívoco: aquele que, apesar da sua aplicação, não obtiver as boas graças do ídolo trabalho é responsável por essa situação, e não tem que haver problemas de consciências em abatê-lo ao activo ou pô-lo na rua.

Pierre Bourdieu - "Sobre a Televisão"

Uma parte da acção simbólica da televisão, ao nível das informações, por exemplo, consiste em chamar a atenção para factos que são de molde a interessar a toda a gente, dos quais podemos dizer que são omnibus – quer dizer, para toda a gente. Os factos omnibus são os que, como costuma dizer-se, não devem chocar ninguém, que não são disputados, que não dividem, que fazem consenso, que interessam a toda a gente, mas de uma maneira tal que não tocam em nada que seja importante. O caso do dia é essa espécie de género elementar, rudimentar, da informação que se torna muito importante porque interessa a toda a gente sem consequências e porque ocupa tempo, tempo que poderia ser usado para se dizer outra coisa. Ora, o tempo é um género extremamente raro na televisão. E se se empregam minutos tão preciosos para dizer coisas tão fúteis, é porque essas coisas tão fúteis são de facto muito importantes na medida em que escondem coisas preciosas. Se insisto neste ponto é porque sabemos, por outro lado, que há uma proporção muito importante de pessoas que não lêem jornais diários; que se dedicam de corpo e alma à televisão como sua única fonte de informações. A televisão tem um monopólio de facto sobre a formação dos cérebros de uma parte muito importante da população. Ora, pondo a tónica nos casos do dia, preenchendo o tempo raro com vazio, com nada ou quase-nada, afastam-se as informações pertinentes que o cidadão deveria possuir para poder exercer os seus direitos democráticos. Por esta via, traça-se uma divisão, em matéria informativa, entre os que podem ler os diários chamados sérios, se é que estes continuam a ser sérios perante a concorrência da televisão, os que têm acesso aos jornais internacionais, às emissoras radiofónicas em línguas estrangeiras, e, por outro lado, os que têm por única bagagem política a informação fornecida pela televisão, quer dizer aproximadamente nada (fora da informação proporcionada pelo conhecimento directo dos homens e das mulheres em destaque, do seu rosto, das suas expressões, outras tantas coisas que os mais desapossados em termos culturais sabem decifrar, - o que não contribui pouco para os afastar de numerosos responsáveis políticos).